Flow
"Por décadas, o Oscar de Melhor Animação parecia seguir uma regra invisível: a Disney vence, e os demais apenas agradecem a indicação. Desde a criação da categoria, o estúdio monopolizou estatuetas, seja com seus clássicos sob o selo Disney Animation ou com as revoluções técnicas da Pixar. Perdeu poucas vezes, mas recuperava no ano seguinte. Mas algo mudou. Desde 2023, o prêmio tem escorregado ininterruptamente pelos dedos do rato mais famoso do mundo, e agora, em 2025, veio o golpe final: Flow, uma animação letã de orçamento modesto — menos de 4 milhões de dólares — derrotou o colosso Divertida Mente 2, que custou 280 milhões.
Era a clássica história de Davi e Golias. Só que, desta vez, Davi era um gato.
Mas o que fez Flow ser tão especial?
Sem diálogos e feito com um software gratuito, o filme nos leva a um mundo pós-apocalíptico alagado, onde um gato vaga em busca de sobrevivência. Pulando entre destroços, navegando em pedaços de madeira e cruzando o caminho de outros animais, ele segue adiante. Não há palavras, explicações ou grandes reviravoltas. Apenas a jornada.
E foi exatamente essa simplicidade que arrebatou o público. Porque Flow não é só sobre um gato tentando sobreviver, é sobre todos nós. Sobre a resistência humana à mudança. Sobre a inevitável fluidez da vida, pois assim como a água que domina o cenário, tudo muda, tudo se transforma, e cabe a cada um decidir: resistir ou seguir o fluxo.
O silêncio do filme não é vazio — é um convite à contemplação. A ausência de diálogos obriga o espectador a sentir, a projetar suas próprias emoções na tela. É um espelho. E o que se reflete ali depende de quem assiste.
O gato não tem nome porque não precisa. Ele é o espectador. Apegado ao que conhece, hesitante diante do desconhecido, incapaz de aceitar que tudo à sua volta já mudou. Sua jornada se desenrola como uma fábula budista, onde cada encontro é um confronto com diferentes formas de encarar a vida — e, principalmente, a inevitável transitoriedade dela.
A jornada do felino não é solitária. Cada animal que cruza seu caminho representa uma faceta humana diante da mudança:
- O lemúrie se agarra desesperadamente ao material, acreditando que o acúmulo de objetos pode protegê-lo do que está por vir. Mas nada pode conter a correnteza. Seu medo o faz estagnar, e o rio, indiferente, segue sem ele.
- A capivara simplesmente aceita. Não luta contra nada, não se angustia com o incontrolável. Solicita, tranquila, ela se adapta a cada nova realidade sem resistência. Se há um símbolo de paz nesse universo caótico, é ela.
- O cachorro, leal e afetuoso, não questiona o destino nem busca respostas. Ele apenas está ali, ao lado do gato, qualquer que seja o caminho. Às vezes, não precisamos de explicações, apenas de companhia.
- A ave-secretário, majestosa e quase etérea, é a figura que o gato mais teme e, ao mesmo tempo, mais precisa entender. Diferente dos outros, ela não teme o fim — pelo contrário, parece abraçá-lo. Em um dos momentos mais belos do filme, a vemos ascender, libertando-se da luta e da angústia. E é ali que o gato percebe: sua jornada ainda não acabou. Para alguns, há libertação; para outros, aprendizado.
Flow é um filme sem verdades absolutas. Há quem o veja como uma simples aventura de sobrevivência. Há quem enxergue um conto sobre a impermanência da vida. A beleza está justamente no que ele não diz. Ele é aberto a todas as interpretações, mas, ao mesmo tempo, fechado em uma única verdade essencial: a vida segue, com ou sem você.
Talvez um dia a Disney recupere seu trono. Talvez não. O que é certo é que, em 2025, o Oscar de Animação não premiou apenas um filme. Premiou uma filosofia. Flow não é só uma animação — é a arte de ser como um rio.
E o gato letão não apenas sobreviveu ao dilúvio, como também provou que, às vezes, o camundongo precisa aprender a nadar. E rápido."
Bela e interessante resenha do filme Flow que está divulgada na internet após a vitória na categoria de Melhor Animação do Oscar 2025.
Fonte:
A Toca do Lobo 🐈⬛
https://www.facebook.com/share/1AyNTZQPbS/
"Flow"
(Dir.: Gints Zilbalodis, Letônia, 2024)
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